O dinheiro doado ao Genoíno é genuíno?

É de conhecimento público que o ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno, foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda no ano de 2013, por participação no esquema do Mensalão. Além de ser punido com pena privativa de liberdade, também incorreu em uma multa pecuniária. O prazo para o pagamento do valor da multa vencia no último dia 20 de janeiro e o condenado dizia não ter dinheiro para arcar com as custas. Nesse intuito, sua família criou um site para arrecadar o dinheiro devido. Era necessário conseguir R$ 667,5 mil. O valor doado ultrapassou R$ 700 mil.

Muitos criticaram tanto a criação do site quanto os doadores. Obviamente, os críticos são os que consideram o político corrupto e que, por isso, deveria ele pagar pelos seus atos, sem recorrer à ajuda de terceiros.

Diante disso, vem a questão em foco. Primeiramente, vale ressaltar que algo genuíno significa algo natural, legítimo, verdadeiro. Aproximo seu sentido com a moralidade. As doações estão inseridas em um padrão de moralidade? De virtude?

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(1) Segundo Aristóteles, todas as ações humanas têm uma finalidade. E a finalidade, na visão do grego, é a eudaimonia (realização). Destaca-se que, para ele, o conceito de realização está intimamente associado ao de virtude, e o homem virtuoso é o que realiza bem sua função de homem, agindo segundo a razão. Porém, para conseguir ser virtuoso (e agir conforme a razão) é fundamental uma boa educação, por meio de hábitos que se aprendem desde a infância.

Dito isso, importa analisar se a doação (neste caso específico, i. e., ao condenado José Genoíno) é um ato moral aristotelicamente. Ora, se a moral vem da virtude, que vem do hábito, que vem da educação, na qual se aprende – dentre outros quesitos – a ser justo, a resposta é não. Afinal, a doação extinguiu uma punição ao condenado, que saiu impune de seu delito. Desta feita, não pode neste caso ser considerado um ato racional ou virtuoso, pois soa como uma carta branca a Genoíno. Enfim, se esse homem não foi habituado a agir moral e virtuosamente por falta de uma boa educação, que o seja por meio de sanções, que servirão como aprendizado. Contudo, as doações impedem tal aprendizado.

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(2) Dessa maneira, pode-se afirmar que uma atitude virtuosa e, assim, moral, não se define tão somente pelo que se quer fazer, mas pelo que se deve fazer – uma vez que a educação leva a saber como agir racionalmente e, consequentemente, à realização. Desse modo, a ética aristotélica se aproxima da ética kantiana, que aduz exatamente que o dever vem antes do querer. E, para saber como agir de acordo com o dever, Kant traz à tona seu Imperativo Categórico: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”. Isto é, o princípio que dirige uma ação deve ser universalizável, ou seja, deve servir também de regra a todos os seres humanos.

Portanto, no kantismo, mais indubitavelmente ainda, a doação não é uma ação moral, e a explicação é simples: se houver doações para todos os réus condenados por algum ato ilícito, as sanções pecuniárias deixarão de ser um problema para os agentes delituosos, incentivando (ao invés de desestimular) as ações imorais. E o resultado disso é a universalização da impunidade, pois o agente sempre se poderá recorrer a terceiros para sanar suas culpas.

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(3) Ainda pode ser trazido à pauta o Utilitarismo, que considera que a melhor ação é aquela que ocasiona maior felicidade à maioria. Apesar de ter uma vertente individualista, o utilitarismo não apoia que os indivíduos se preocupem, prioritariamente, com seus interesses, mas quer maximizar o total líquido de utilidade, o que pode ser o caso de um indivíduo abrir mão de seu interesse próprio para o bem estar da sociedade. E é nesse escopo que o caso das doações em questão seja imoral também nessa corrente da ética. Ainda que seja de interesse de um militante petista ou um familiar próximo a doação para seu “companheiro”, o resultado final não agrada a grande parte da sociedade, que enxerga um agente saindo impune de seu ato ilícito.

Em suma, em nome de uma suposta inocência de Genoíno, que saiu à porta de sua casa, com braço para cima, punho fechado e uma capa de lençol, várias pessoas tentaram demonstrar um pseudoaltruísmo, com um quê de revolta contra a condenação do amigo (que, convenhamos, é no mínimo tão inocente quanto Lula). Como paladinos da justiça e guardiães da moral, o tiro saiu pela culatra. Agora, vão ser lançados sites semelhantes para doações a José Dirceu, Delúbio Soares e João Paulo Cunha. Alguém tem dúvida de que eles também conseguirão se eximir da dívida? É realmente desmoralizante.

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Sobre lucassrodrigue

Graduado e Mestre em Filosofia pela UFMG. Dezenas de artigos publicados em Jornais, como Estado de Minas e O Tempo. Debates sobre o cotidiano e (i) a filosofia, com seus aspectos políticos, sociais e éticos; (ii) os filmes, com suas possibilidades de interpretações inúmeras; e (iii) o espiritismo, doutrina por mim seguida na vida.
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3 respostas para O dinheiro doado ao Genoíno é genuíno?

  1. Fátima Soares Rodrigues disse:

    Texto claro e “genuíno”. Acredito que a falha maior está na raiz: as brechas dadas pela justiça, principalmente no que se refere (novamente) a dinheiro. Fiança é para quem tem como pagar. Quem não tem, paga “ceitil por ceitil” atrás das grades. Enfim, fiança não combina com justiça.

  2. FTC disse:

    Enfim, fiança não combina com justiça. (2)

  3. Elaine Soares Rodrigues disse:

    Você poderia continuar filósofo, mas retomar o Direito e ser advogado, pois seus argumentos (filosóficos) sempre me convencem. Para mim Genoíno não tem nada de genuíno, e sim de muito esperto. Você foi sensacional em:

    “Ora, se a moral vem da virtude, que vem do hábito, que vem da educação, na qual se aprende – dentre outros quesitos – a ser justo, a resposta é não. Afinal, a doação extinguiu uma punição ao condenado, que saiu impune de seu delito. Desta feita, não pode neste caso ser considerado um ato racional ou virtuoso, pois soa como uma carta branca a Genoíno. Enfim, se esse homem não foi habituado a agir moral e virtuosamente por falta de uma boa educação, que o seja por meio de sanções, que servirão como aprendizado. Contudo, as doações impedem tal aprendizado.”

    Gol de placa! Foi em cima!

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